[Texto do dia]⟶ Essa concepção dualista, que estabelece uma distinção radical entre o corpo e a alma no ser humano , pode ser mais bem exemplificada nos escritos de Platão. Em sua obra Fédon , Platão apresenta um diálogo de Sócrates e seus amigos Cebes e Símias. Considerado culpado de corromper a juventude e condenado à morte pela ingestão de veneno , assim se expressa Sócrates pouco antes de ser executado:
"Bem , examina agora , portanto , Cebes , se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às mesmas conclusões: a alma se assemelha ao que é divino , imortal , dotado de capacidade de pensar, ao que tem uma forma única , ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo identidade ; o corpo, pelo contrário , equipara-se ao que é humano , mortal , multiforme , desprovido de inteligência , ao que está sujeito a decompor-se , ao que jamais permanece idêntico . [...] Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim , não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo , e à alma ao contrário, uma absoluta indissolubilidade , ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
- Platão . Fédon . 2 . São Paulo: Abril Cultural , 1979.p. 84 (Coleções Os Pensadores).
Essa oposição radical entre corpo e alma , conforme encontramos em muitos pensadores da Grécia Antiga , é bastante diferente das concepções que inspiraram a escrita dos textos bíblicos. Escrito em sua maior parte originalmente em hebraico , o Antigo Testamento , por exemplo , utiliza a palavra 'nefesh" - que possui um significado próximo ao de "alma" ou de "vida" - em referência a um sujeito uno , sem a implicação dualista. Há ainda a palavra Ruah , frequentemente traduzida por "espírito" , mas que não significa uma "parte" do ser humano que sobrevive à morte do corpo, e sim a pessoa como um todo , em sua relação dinâmica com Deus. O Antigo Testamento usa ainda a palavra 'basar", que pode ser traduzida como "carne"; porém , longe de significar alguma coisa que alguém possua , "basar" indica o indivíduo , tanto assim que pode ser usada em substituição ao pronome pessoal. Mesmo nos livros do Novo Testamento , escritos originalmente em grego , encontramos uma concepção unitária - não dualista - do ser humano . Nos escritos de Paulo , por exemplo , chama atenção a oposição entre "espírito" e "carne" , mas mesmo nesse caso não se trata de entender o ser humano como composto de dois elementos distintos , e sim de compreendê-lo a partir de duas perspectivas diferentes: a "carne" designa o caráter transitório da vida , sujeita ao pecado , enquanto o "espírito" indica a vida humana plena em harmonia com Deus. Nos primeiros séculos da era Cristã, o cristianismo se difundiu principalmente a partir do mundo helênico. Basta lembrarmos , por exemplo , de algumas das epístolas de Paulo: aos Coríntios , aos Gálatas , aos Efésios , aos Filipenses , aos Colossenses e aos Tessalonicenses . O uso da língua grega e de termos como psique (alma) , soma (corpo) e pneuma ( espírito) acabaram invariavelmente associados a concepções filosóficas gregas , especialmente ao dualismo platônico . Foi nesse contexto ainda que se desenvolveu o gnosticismo , um movimento filosófico-religioso que afirmava que a salvação humana era dependente da libertação do corpo , tido como mau e desprezível . Desse modo , um dos principais desafios da Filosofia patrística era conciliar as concepções gregas e bíblicas na busca de um entendimento comum para a fé cristã , o que explica em parte a questão da tradução bíblica da palavra grega "psique": a palavra "vida" estaria mais de acordo com concepção bíblica original , mas a palavra "alma" remeteria às interpretações que a Bíblia absorveu do mundo helênico.