[TEXTO DO DIA]→ Coisa misteriosa , para mim, qualquer buraco. Na infância , ficava intrigado : quanto mais terra havia. Não acabava , a menos que eu fosse parar no Japão, que me garantiam estar bem embaixo do Lins de Vasconcelos , mas do outro lado do nosso planeta. Seria exagero , nada tinha a fazer no Japão. Memória também é um buraco , quanto mais se tira matéria , mais matéria aparece. E , ao contrário dos buracos que fazemos no quintal , nem adianta ir até o fundo , pois não há nada , nenhum Japão no fundo dela. Mexendo em papéis antigos , dei com um dos testamentos que o pai fazia de vez em quando , nos raríssimos momentos em que não tinha nada a fazer. Eram muitos os seus testamentos , suas últimas declarações e vontades . Começava invariavelmente perdoando todos os seus inimigos - e ele nunca teve um inimigo. Não levava mágoas de ninguém , pois nunca se sentia magoado , um bom-dia que recebia do vizinho ou do leiteiro era uma homenagem , um tapete vermelho estendido à sua frente. Acreditava que todos gostavam dele porque gostava de todos. Não se lembrava de ter , voluntariamente , ofendido ou destratado quem quer que fosse e , se o fizera , pedia desculpas e prometia reparação - se houvesse tempo e oportunidade. Citava uma infinidade de amigos e conhecidos, dando um livro de sua biblioteca ou um selo de sua coleção a cada um deles como "penhor de sua amizade". Pedia moderação nos funerais , nada de luxos e de prantos. Aceitava preces , confessava que tinha muitos pecados e deles se arrependia. Foram vários os testamentos , todos mais ou menos iguais , somente as datas variavam . O último , feito pouco antes do fim , foi o mais enigmático , ele que não tinha enigma nenhum , era transparente e colorido como um vitral de igreja. Deixou um embrulho para mim , embrulho que nunca abri. Foi a forma que encontrei para que ele continuasse perto de mim.
- Folha de São Paulo . Opinião, P. A 2 , Follhapress. São Paulo , FSP, 13/11/2003.